Saturday, May 17, 2008

a morte não é uma sala de hospital, não é estar ali sentada com as músicas do festival da canção de 68, já não és quem ali está. E é estranho que é aquilo que a enfermeira não me diz que me diz tudo, o seu "a médica já fala consigo".
Depois ao ver-me perdida, repete-me a mesma frase do cinema: "fale com ela, que ela ouve-a". E, por uma vez, como é difícil reconhecermos o discurso! A minha timidez faz com que a nossa interacção seja restrita, afago-te a testa e digo um "bom dia" em jeito de "gosto de ti".
Uma hora depois e tudo se confirma, já não voltas para nós.
E aí, quando voltamos a tua casa, à casa que será sempre tua, uma dor mais fina e absurda nos consome. É aqui que a tua morte é palpável.
Escolhemos a tua última roupa e pensamos em ti dentro de todos os fatos que não mais vais usar, tentamos não ver os teus óculos, deitamos fora a escova de dentes, pensamos no que fazer ao teu telemóvel. Como são absurdas as coisas por si só, como é denso o vazio que fica sem a pessoa que interage. Ali ficamos durante a tarde a passear por aquilo sítio tão teu, deseperadamente a tentar ter uma ocupação, obcecadamente à procura de fazer qualquer coisa.
O estufado que nasceu deste desespero, ficou a ocupar o frigorífico, como todos já adivinhavamos.
Bate-me mais forte o coração por ver o caixão a chegar.
É uma certeza, repito-me para ter a certeza, "Já não voltas para nós".
A ideia que me consola é a de que "te tivemos".
E é difícil conhecer pessoas tolerantes, que sofreram mas não amarguraram, que criaram raízes tão fortes nas pessoas que as rodeiam, pessoas que souberam fazer amigos, mas que sobretudo souberam manter amizades.
Ficarás sempre conosco, é também uma certeza.

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